"Boa tarde, Rodrigo," disse uma senhora de bata branca, do outro lado da mesa clara e fria pelas luzes a condizer. "Olá, doutora," respondeu com um sorriso. "O que conta hoje?" disse ela, retribuindo com um sorriso subtilmente luminoso. "Descobri algo," respondeu Rodrigo. "Descobri que só eu existo. Isso mesmo. Só a minha consciência é activa, em todo este espaço com luz." Fez uma pausa, esperando uma reacção da ouvinte. "É um exercício que criei para mim mesmo," continuou. "Ou talvez seja fruto de uma necessidade de entretenimento pessoal, uma necessidade de me enganar, para me sentir acompanhado no meio da solidão eterna que é o tempo infinito. Isto é tão importante, digo, que não pode ser esquecido. Mas amanhã lá vou eu pelas ruas, acreditando que falo com pessoas não emanadas por mim. Por vezes, até desconfio que me olham e me julgam pelos meus pensamentos ou acções. Só eu me julgo e, obviamente, o meu sonho reage." Ela pensou um pouco e disse "Mas se é você que é tudo, quem é que lhe cria os obstáculos no dia-a-dia? Quem é que arbitra a sua vida? Quem é que tem interesse em fazê-lo crescer? Você mesmo?" A resposta não parecia ser fácil. "Eventualmente, antes de começar este exercício, deverei ter contemplado que este método seria o mais eficaz para me fazer acreditar estar acompanhado."
quarta-feira, 16 de setembro de 2020
terça-feira, 15 de setembro de 2020
Chama aberta
Diz. O que disseres. Enquanto dizes não choras por dizer. Cada palavra é um pouco profunda. Um poço fundo, de dizer. E enquanto o cacau sobra, diz. Há aromas por aí. Há cada momento mais corpulento… Por vezes, o virar lento da cabeça gentil, quase transparente de emoção febril, em si. Abre. Abre-te e diz. Se há outro texto por dizer, sê. O que quiseres. Enquanto és não choras por não ser: mago, ou partícula de Deus. Dar forma aos meus dizeres, de dentro, se o preferes. Há coisas que tocam.
Eu sou um troço entre mim e eu. Vou no meu dorso, ao som do ar. Voar do sou para o vou-te amar. Sempre soube que a magia era, em ti, a chama de mim. Aquilo que temo dizer. Teimo em dizer: diz. Digo que tive a chama aberta. Digo que abraçava o mundo. Agora estou perto.
segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Trocado
Estou trocado. Então não era ontem que era hoje? Afinal é ontem. E não era tudo que era tudo? Afinal pouco é mais que tudo. Diz-se que a verdade é que é a verdade, mas mentem! A mentira também se pode tornar verdade. Se amanhã não existe, e isto é verdade, é mentira que amanhã existe! Logo, é verdade que a mentira se pode tornar verdade, porque amanhã vai existir! Mentira dizer que sei isto, mas no fundo é verdade que sei! Portanto a verdade não é a verdade. Se a verdade fosse verdadeira, permaneceria verdade. Por que raio estou a ir tão fundo neste exemplo específico? Estou trocado. Terei, certamente, algum problema com a verdade. Algo escondido. Algo mal resolvido em mim. Foi preciso chegar aos 30 para perceber que verdade é diferente de honestidade. Minha querida avó.
domingo, 13 de setembro de 2020
O Lambe Mãos
Acordou no seu quarto frio, e olhou lá para fora, pela pequena janela na porta. O cheiro a cinzento mostrava o pó seco colado a cada cilindro da sua maca. O Lambe Mãos havia sido preso, outra vez, no hospital. Tudo o que ele queria fazer era lamber mãos, mas, por alguma razão, havia sempre algo mais a acontecer, e que acabava por correr mal. O primeiro incidente teria ocorrido com o seu gordo e anafado pai, junto a um lago com patinhos bonitos e contentes. Tudo estava tão belo, e os patos não têm mãos, e a mãe estava longe, e as crianças brincavam, e o pai tinha mãos gordas e anafadas. Estava junto ao lago, ao pé das pedrinhas que davam para o lago. Então foi-se a ele, com a língua de fora, e a cabeça oval e desprovida de cabelo. Bofetada aqui, caiu no lago. Os peixinhos não têm mãos, e assim avançou às gordurosas e inchadas do pai. Foi muito intenso. Então, acordou no hospital. As seringas não têm mãos, mas precisam de mãos, só que amarrado não dá. Então esperneou, debateu-se com as cordas, gritava por mãos para lamber, mas não o verbalizava. Gritava. Quando a mãe apareceu, ele lambeu-lhe as mãos. Sorriu. A mãe chorou. “Ele não é agressivo, é mais isto de lamber as mãos. Como ele não tem…” havia passado uma fase oral incompleta. A sua carne havia sido amputada quando nasceu, com os braços por um fiozinho, atrofiados e sem piada. Este texto está a ficar demasiado escuro. De onde vem tanta merda?
Sapito
Tenho de dizer... que te encontro a cada texto. Cada palavra é ofuscada por mim, mas no grande todo, ou talvez nas entrelinhas, encontro-te a ti. E tão bom que é ter-te. Cada pequeno gole de ti. Cada pequena respiração, que vem com o aroma do papel, de ti. E é assim. É assim que a vida se vai desvelando, a cada beijinho de texto, a cada carinho de sono, a cada canelada de dentro! Ai, memória de merda. Eu gosto muito de ti. Eu gosto muito de ti. O sapito vem de mim. Eu gosto muito de ti. Cada pedaço, cada beijinho de ti. Eu sou um grande confuso (de ti).
Lavabos da Tia
Não há momento como este. Desfaço-me de tudo o que estava a mais. "Alguém me fez umas seis chamadas hoje, não sei quem foi," disse ela. "Chi!" respondi, enquanto me aprontava para o meu momento de escrita relâmpago. Felizmente, estava controlado. Os tons mel nos traços muito direitos, tudo paralelo ou perpendicular. A porta deixava-se abrigar por roupas de noite, como pijamas e roupões. Os tons mel deixavam passar um aroma que vinha de dentro. O café continuava a ceder à existência. E badalaram as 10 horas, com um som electrónico e melodramático. Preferia tanto quando era um cuco a sair pela portinhola. O pente laranja estava manchado pelos anos. Tinha elixir entre os picos compridos. Não pingava. Bebi o resto do café, que queria durar. Espero que não dê caganeira.
sábado, 12 de setembro de 2020
Uma ideia
Eu tive uma ideia. Era uma ideia boa. Uma ideia quase gloriosa (de mim mesmo). Era a de subir por um escadote, daqueles de velha madeira, e não parar mais. Continuar a subir. Então fi-lo. Comecei a fazer-me escapar. A cada passo de céu, mais distante estava do centro. Era mais que raio de roda de bicicleta. Era relâmpago rasgado em ascensão aos astros. Fui subindo, e ultrapassei-os. Fiquei fundido com a tela onde estão pintados. Ao contrário do que pensava, tinha todas as cores, e isso agradava-me. Depois quis descer. E assim reparei na minha natureza bipolar corajosa - há quem volte sempre. E assim, sim, fiquei com o escadote.
sábado, 5 de setembro de 2020
Pensamento Verdadeiro
Ali estava ele, curvado. A mão dobrada sob o queixo pontiagudo, como se de um pensamento se tratasse. Só que não. Estava no Momento Secreto - aquele em que vivemos, inquestionavelmente, sem o perceber. Eterno. Então, através do inevitável querer, criamos movimento. Assim o fazia ele, também. O seu cabelo grisalho ostentava um género de coroa, mas na vertical. Um género de rosa-dos-ventos, só que de memórias. Era um relógio. Mas não era um relógio qualquer. Era um relógio mágico - que falava do tempo real, o Momento Secreto - onde pode ser mais antes, ou mais agora, ou mais depois. Sim!, um relógio no topo da cabeça, que fala do imediatamente passado, do presente presente, e do futuro acabadinho de chegar. Com a ponta dos dedos da outra mão, tocava numa bola dourada que se ia arrastando, moldando, rodopiando. Tudo em câmara lenta. Como se fosse uma chama, mas de um material dourado, como um poema. Observava-a com uma lupa. À lupa era possível observar uma cavidade a que se poderia chamar de “boca”. E na boca havia uma dentição a que se poderia chamar de “fechadura”. A lareira acesa fazia crepitar lenha com um cheiro familiar. Tudo parecia estar prestes a mudar. Do relógio no topo de sua cabeça retira uma pequena agulha, a que se poderia chamar de “chave”. E assim colocada tal chave, a bola começou em movimentos de vaivém na vertical. Parecia uma cebola a descascar-se. Ou um comboio zangado, ou zonzo. Algo estava a mudar. Tudo estava a acelerar. A lenha a crepitar. Cai uma névoa de desfoco. Entramos num mar denso. E, de repente, estou aqui. Sou cada palavra, cada pedaço de texto. Olá. Sou, agora, o texto que estás a ler. O homem que estava junto à lareira desmaterializou-se, e juntou-se ao todo. Agora faz parte de mim. Será que tenho um relógio na cabeça? Não devo ter. Chego sempre atrasado.